terça-feira, 10 de abril de 2012

Sobre suas aulas e a vida

Professora Bete (falo com o professora na frente por considerar você uma referência no que faz),

hoje pude, enfim, assistir ao filme "O Contador de Histórias". Sabe qual é? Conta a história do Roberto, aquele contador de histórias que conheci na Sala de Leitura da EMEF Gal. Othelo Franco, em uma daquelas manhãs e tardes tão cheias de história, notícias, reflexões, cheias de aprendizado.

Não pude me conter, precisei enviar este e-mail. E a quem? A quem foi mais que professora.

E o que era aquela Sala de Leitura? Que lugar mágico. Foi o lugar da minha primeira leitura, não me lembro o nome do livro, mas me lembro um pouco da história... uma mãe com sete filhos, um chamado segunda-feira, o outro terça-feira, o outro quarta, e assim por diante, até que se completassem todos os dias da semana. Deve saber qual é, sim?

Minha presença no Othelo foi tomando forma desde que entrei. Era atenciosa com as coisas, tinha em mim algo grande. Queria ser professora - ainda quero, sou aos sábados.
Lembro de alguns momentos complicados, da noite que cheguei em casa triste e dormi chorando por ter ouvido algumas palavras de uma senhora, se dirigindo a um colega de classe, morador do mesmo bairro que eu: "Ou você vai melhorar, ou vai voltar para o buraco de onde veio". A senhora, Dona Sandra, referia-se neste trecho ao meu bairro. Cidade Tiradentes. Chorei uma dor sentida, por que eu morava em um "buraco"? Por que o meu bairro era ruim? Minha mãe mora aqui, eu cresci aqui, fui boa aluna aqui e frequentei meu primeiro dia de aula aqui. Não, não era ruim, aquela Dona não sabia de nada. Não sabia, sobretudo, que palavras tinham poder.

Anos depois tive de ouvir, de alguém que não pude retrucar no momento, que a polícia devia mesmo entrar na favela e matar todo mundo. Como matar todo mundo? Quem era aquela pessoa que se dizia espírita e fraterna? Eu, minha mãe, minha avó, minha bisavó e meu irmão, nós somos periféricos. Ouvir aquilo foi uma das piores coisas que já entraram por meus ouvidos. Soube que não pertencia àquele ambiente que estava quase me embalando. Não poderia pertencer a um local onde os que reinam desejam o extermínio, pela polícia, de seres humanos.

Por que a sociedade é tão injusta? Por que minha mãe tinha de se humilhar para acompanhar uma premiação da filha que, na oitava série, escreveu, sem ajuda ou auxílio de nenhum professor, uma redação que foi eleita uma das dez melhores do estado de São Paulo? E lembra quem eu chamei para acompanhar aquele momento que não poderia ter ao meu lado a mulher que sempre foi minha inspiração de coragem e luta? A senhora, professora. E por quê? Porque sentia que podia confiar, mas não foi uma atitude fácil, foi dolorido ouvir de minha mãe que a patroa não a tinha autorizado e que a premiação era bem no horário de "pico" do restaurante em que trabalhava.
Por fim, ela pôde ir. E a senhora e a professora Eloísa e a professora Dagmar também. Ganhei uma rosa da professora Dagmar, era o símbolo do reconhecimento. Ela se atrasou no dia, achei que não viria mais, ela se atrasou por não ter encontrado nenhum lugar aberto para comprar a rosa, faltou ao trabalho na outra escola em que lecionava para acompanhar-me.
Minha mãe estava linda aquele dia, com uma roupa social que eu gostava muito que ela usasse, tinha cor amarronzada. Ficou tão orgulhosa e eu tão feliz por ter dado aquele momento a ela.

Voltando ao filme, quando ela acaba, a cena é da mãe do contador de histórias lavando roupas em um tanque, e ele chegando... a pergunta dela: "Disseram que você só sairia da FEBEM doutor, e o que é que você se tornou, meu filho?", e ele dá-lhe a resposta: "Professor, mãe".
E então, senti dolorida novamente a humildade do coração daquela mãe, que tinha legado ao filho o destino que ela, por esperança, deixou cair sobre o colo do Estado. E coitado dele se tivesse dependido do sistema falido do Estado.
Percebi então um ponto semelhante entre a biografia dele e a minha, a esperança de nossas mães. A esperança em um futuro melhor, menos feroz do que elas enfrentam - ou são obrigadas a enfrentar - para levar uma casa, filhos, gastos com alimentação, transporte, estudo, serem respeitadas, suportarem firme.

Lembro de uma coordenadora que tivemos no Othelo, e um dia que tivemos uma peça na escola. Só poderia ver a peça os alunos que pagaram, era do grupo Café&Poesia, se não me engano. Eu não tinha levado o dinheiro, tinha esquecido de pedir pra minha mãe. Estava dentro da sala, junto de outra meia dúzia de alunos que não pagaram. A coordenadora veio até a porta e me viu, espantou-se, pediu que eu saísse da sala e a acompanhasse, fui com ela até a secretaria e ela me disse: "Você trabalha demais por essa escola (na época eu já era do Grêmio), não é justo ficar sem ver a peça. Tome este ingresso, leve lá embaixo", tentei dizer que não precisava, mas não consegui expor direito o que queria, tamanha minha felicidade, cheguei no pátio com a peça quase no começo e com os olhos cheios d'água.

Outras duas vezes que senti muita alegria foi quando a professora Eloísa me deu uma caixa inteira de lápis Faber-Castell, aquelas com muitas cores, acho que 34 ou 36 cores, ela tinha visto meus desenhos e a condição de meus lápis (pequenos, no toco) uns dias antes, e eu tinha dito que eles estavam quase acabando e que eu só gostava de pintar com lápis Faber-Castell. Mas como sabe, eles são caros, não seria justo pedir a minha mãe que os comprasse. Ela me chamou no meio de uma aula e me entregou a caixa, disse: "Olha, são da minha filha, ela mau usa, trouxe pra você". Naquele dia fiquei perplexa com a atitude, com o carinho. Chorei. E nunca me esqueci disso. Fazia desenhos muito coloridos, dizia que queria colocar a cor que minha vida não tinha, estava em um quadro depressivo e não sabia, vim saber anos depois.

A outra ocasião foi quando a professora Estelita, de Matemática, convocou alguns alunos para uma conversa na sala dos professores, eu estava entre os poucos. Não sabíamos do que se tratava, mas soubemos assim que chegamos. Era um convite para participar das Olimpíadas de Matemática, ela tinha chamado somente os melhores alunos. Voltei para a sala, onde estava passando lição na lousa, para os outros copiarem (não me lembro se por falta de professor ou para ajudar algum); enquanto escrevia a lição na lousa, chorava discretamente. Feliz novamente.

Sabia que alguns professores não acreditavam em mim, eu era "bocuda", falava gírias com frequência, nada mais normal no frenesi da pré-adolescência, não? Mas algumas pessoas eram desonestas, lembro quando uma professora me contou que tudo o que eu falava para a Dona R. era repassado aos professores na Sala dos Professores. Fiquei com muita raiva naquele dia, quis sair da sala, mas não saí porque fui proibida pela professora que tinha me contado, ela sim, digna.

Eu sempre gostei muito de Geografia, foi então que em uma aula da Nelci fiquei mais agitada, devo ter respondido para ela. Entretanto, nenhuma atitude de represália pública foi tomada. No fim do período ela me chamou para sentar em frente à mesa dela e perguntou o que estava acontecendo... Como ela podia saber que tinha algo errado comigo? Não sei porque, mas comecei a chorar e a contar fatos sobre minha vida. Aos 11, 12, 13 anos eu já sentia muito peso nas costas. Acho que foi isso que me fez desabar. Ela partilhou comigo alguns traços autobiográficos, das dificuldades que a família dela tinha e como ela tinha se tornado professora. Foi uma inspiração.

Anos depois, quando estava na EE Oswaldo Catalano, conversando com a diretora Mariangélica sobre o cursinho que tinha acabado de ser implantado acompanhando a Priscilla (ex-coordenadora), ouvi novamente coisas que me deixaram mexidas, a diretora dizia que ela tinha problemas com os professores da escola, que não gostavam dos alunos daquela escola, porque eles vinham de Guaianases, Itaim Paulista, Cidade Tiradentes, diziam que a escola era ruim porque ela não fazia como o Ascendino, de selecionar os alunos pela localidade da casa, que aceitava um monte de marginais... e para completar ela contou que a fila para matrícula daquele ano tinha extensão do portão da escola até a Av. Celso Garcia, que muitas mães tinham dormido na porta para conseguir vaga. Pedi licença para ir ao banheiro, chorei mais uma vez, sentia todas aquelas palavras, sabia o que era este tipo de preconceito. Tentei me recompor e voltar à sala dela, e não mais pensar naquelas coisas, correndo o risco de chorar na frente de todos dessa vez.

Sempre era a mesma história... quantos dos meus amigos, que estudaram comigo no Othelo deram "certo"? Poucos, acho que se eu contar em uma mão, sobrarão muitos dedos. E por quê? Ora, não é óbvio? Olha bem o sistema econômico e social em que vivemos, as pessoas são praticamente obrigadas a viver uma vida de privações, obrigações e nenhum lazer, nenhuma felicidade concreta e verdadeira. Só distração barata, sem conteúdo ou qualidade.
Como esperar que as pessoas mudem se o mundo continua o mesmo - ou cada vez pior - cada vez mais virulento? Como querer que as crianças queiram aprender algo e tenham interesse pela escola, quando ela é totalmente avessa às suas reais condições de vida?

Por que me dedico tanto ao cursinho que coordeno? Porque não quero ser mais exceção, quero que mais pessoas, como eu, possam ter os horizontes ampliados, consciência para perceber o mundo e atuar nele. Quero oferecer mais ferramentas como as que tive naquela Sala de Leitura. Enquanto o conhecimento, que gera sabedoria sensível, não for fomentado não teremos mais exceções, teremos só regras, as regras da operadoras de Telemarketing, as regras da caixas de supermercado, das atendentes do McDonald's. Continuaremos, então, a produzir uma sociedade da qual somos co-autores, que forma seres humanos incompletos, incompreendidos e incapazes de compreender.
Enquanto a empatia não for a moeda-chave da vida, e a fraternidade e solidariedade guiar nossos passos, teremos mais e mais estudantes que entram na escola, sentam nos bancos que eu sentei um dia e saem para assaltar bancos.

Espero que meu relato sirva para saber como minha vida tomou rumos diferentes dos que poderia ter tomado, não fosse a família que tenho e as mestras que tive ao longo do caminho. Que renove sua felicidade ao lecionar, estou contigo.


Fraternalmente,

Um comentário:

Gabrielle Idealli disse...

Confesso que chorei.
Tinha como não chorar?
Tive meus motivos (que você bem os sabe). Mas senti como se fosse em mim, como de outras vezes que me contou algumas das situações citadas. Sei que não passei pelo mesmo (sabemos), mas senti tamanha empatia que não pude evitar.
Obrigada por me deixar fazer parte de sua vida, de sua história.
Amo você, cada dia e cada segundo, mais.